Morrer na solidão

Por em 3 de Fevereiro de 2012

A notícia das duas irmãs idosas de 74 e 80 anos que foram encontradas mortas, na sua residência, em Lisboa, na semana transacta, e um outro idoso que esteve um mês morto em sua casa, em Espinho, sem ninguém dar por nada, deveria encetar uma reflexão profunda sobre as reconfigurações da solidariedade e as perplexidades na mudança social.

Desde o inicio do ano que já se registaram 12 situações de idosos encontrados mortos nas suas residências, só em Lisboa. Se a estes dados associarmos os 79 casos registados em 2011 e, 60 em 2010, colocamo-nos perante uma imensidão de interrogações que nos levantam algumas perplexidades. Por outro lado, num país em que se estima que mais de 15000 idosos vivem sozinhos ou em meios isolados, ficamos perante um quadro sócio-demográfico bastante inquietante.

É certo que hoje se morre mais tarde. É certo que os avanços da medicina em muito contribuem para o aumento da esperança média de vida. É certo que o número de nascimentos tem sofrido um decréscimo. É certo que hoje, ao contrário de outrora, já não se morre em casa, mas de alguma forma em hospitais. É certo que as solidariedades mudaram. É certo que a mudança social é inevitável. Mas, não pode ser certo, morrer na solidão!

Se é certo que o ser humano é eminentemente social e necessita do estabelecimento de interacções sociais para a sua satisfação e integração num determinado grupo e/ou comunidade, em oposição a este principio, a solidão surge como um estado de alguém vive afastado do mundo ou isolado do meio ou grupo social. Na base das múltiplas abordagens sociológicas sobre a integração social, encontramos dois eixos estruturantes. Por um lado, a família, elemento de estabilidade emocional e, por outro lado, o trabalho como factor elementar para a manutenção das dimensões socioeconómicas do individuo. Na oscilação de um destes eixos, resultam um conjunto de metamorfoses na vida em sociedade. Contudo, se aliarmos a esta dicotomia a idade avançada, constatamos que há uma falha abrupta destes dois eixos e uma sentença inevitável para a solidão.

A compreensão da solidão no quadro da modernidade pressupõe um olhar para o ritmo alucinante das transformações sociais e para as configurações que a dinâmica social incute aos actores sociais. Este individualismo egoísta e paradoxal, construído e alicerçado pelas lógicas consumistas, pela valorização do material, e pela hipócrita rejeição do outro, tem conduzido a uma sociedade dos bens materiais, em detrimento duma sociedade dos valores da solidariedade e da partilha.

Quando exaltamos o Ano Europeu do Envelhecimento Activo (2012), deveremos colocar no centro do debate algumas questões estruturantes. A solidão conquistou um espaço distante do mero controlo ecológico dos vizinhos, consubstanciando a certeza da fragilidade das relações de vizinhança. Enquanto uma parte bastante significativa da sociedade moderna se encontra ligada ao mundo pelas mais diversas formas e processos, há uma outra fatia da sociedade que vive na solidão e no isolamento. Este paradoxo social da modernidade empobrece a acção individual e a alienação dos seres humanos.

O envelhecimento assenta principalmente numa maior longevidade do indivíduo mas, não pressupõe isolamento e devoção ao esquecimento da pessoa idosa. Esta nova tipificação do envelhecimento solitário é (ou deverá ser) um problema central para as políticas sociais. A uma população envelhecida, corresponde uma maior despesa da Segurança Social em prestações sociais, maiores custos no Serviço Nacional de Saúde, um maior fosso inter-geracional, constrangimentos no crescimento económico, entre outros problemas socioeconómicos. Igualmente, este cenário em que nos encontramos, vem contribuir para a construção de uma atitude negativa face ao envelhecimento, gerando estereótipos e preconceitos face à pessoa idosa.

O sentimento de inutilidade da pessoa idosa e, fundamentalmente, a construção de representações sociais negativas sobre o envelhecimento, vieram introduzir no discurso social, novas abordagens e novos conceitos. O idadismo, fazendo significar uma realidade social nova que reflecte sobre a discriminação na idade, é um dos constructos que tentam encontrar explicações para este fenómeno social.

Uma das figuras mais marcantes do modernismo, Virgínia Wolf (1882-1941), escreveu um dia que “Há uma idade na vida em que os anos passam demasiado depressa e os dias são uma eternidade”. Não creio que o caminho, em que a “eternidade” se torna num pesadelo, caracterizado por esquecimento, solidão e sofrimento no vazio, resultante da redução das relações familiares e/ou de amizade possa perdurar por muito mais tempo.

Uma investigação publicada no “Journal of Health and Social Behavior”, em 2009, vem reforçar a tese de que os idosos que não possuem relações familiares e/ou amizade, e que simultaneamente acumulam o estado de solidão, independentemente de terem familiares e amigos nas suas proximidades, apresentam uma tendência para uma saúde física e mental mais frágil.

Este trabalho dos investigadores da Cornell University, nos EUA, estudou cerca de três mil pessoas, com idades compreendidas entre os 57 e os 85 anos. Entre os principais resultados, constatou-se que os idosos que possuíam um menor número laços sociais eram menos favoráveis a descrever a sua saúde física como sendo “boa ou excelente”. Por outro lado, os idosos que manifestaram sentimentos de isolamento social (mesmo com amigos, família e actividades sociais regulares) manifestaram igualmente uma situação de bem-estar físico e mental delicado.

Face a este trabalho de investigação, fica bem patente a tese sobre a pertinência da manutenção e dinamização das redes sociais formais e informais na prevenção de danos resultantes da solidão. Sentir-se sozinho no meio da multidão como foi o caso das duas irmãs idosas, levanta-nos um conjunto de interrogações sobre as novas solidariedades e a inutilidade do ser velho. Não ter ninguém para conviver numa cidade com cerca de 546 mil habitantes é no mínimo paradigmático, preocupante e inadmissível numa sociedade que se diz moderna, tecnológica e avançada.

Morrer na solidão pode ser prevenido. O apoio e dinamização das redes de apoio informal, políticas sociais de apoio ao envelhecimento activo, o trabalho psico-social na aceitação das perdas dos familiares e a construção de estratégias de dinamização do envelhecimento como um continuum do ciclo vital, podem ser pequenos passos para não se morrer sozinho. Aquilo que semeamos hoje, colheremos amanhã!

Sobre Joaquim Fialho

Deixar um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Comment moderation is enabled. Your comment may take some time to appear.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.