Poupar e gerir em tempos de crise

Por em 10 de Novembro de 2011

É sempre possível fazer uma boa gestão da conta bancária, criar um fundo de emergência e fazer o planeamento da reforma, bastando para isso alguma disciplina.

Se hoje ficar sem emprego, quantos meses consegue viver sem o seu salário mensal? A resposta pronta para a maioria das pessoas será: “não muito tempo”. A habitação, as despesas com água, electricidade, gás, supermercado, combustíveis e educação são responsáveis pela maior fatia do vencimento dos portugueses e com o aumento do preço dos bens essenciais, gerir o orçamento familiar torna-se cada vez mais uma tarefa hercúlea.
Isabel Vieira é professora de Economia na Universidade de Évora, investigadora na área da economia financeira internacional e autora do livro “Dinheiro: gastar, poupar e aplicar”, onde ensina a calcular os valores necessários para sobrevivermos a uma situação inesperada, resolver problemas de endividamento ou a assegurar uma reforma confortável.
A falência do banco americano Lehman Brothers e a bancarrota da Islândia em 2008 fizeram soar os alarmes nos mercados financeiros internacionais e colocaram o mundo em alerta vermelho.
Os mercados financeiros são um ponto de encontro entre agentes que têm dinheiro disponível e os que precisam desse dinheiro. No mercado primário, quem tem dinheiro e quer investir para o rentabilizar recebe títulos de dívida ou de propriedade, emitidos por quem recebe o dinheiro. Estes títulos podem depois ser comprados e vendidos livremente, no mercado secundário.
No mercado secundário, que existe para assegurar a liquidez dos títulos, a cotação destes é determinada pelas leis da oferta e da procura. Muitas vezes, compra-se e vende-se com base em expectativas que não são diferentes das apostas que se fazem num casino, refere a investigadora, professora Isabel Vieira.
“Os valores que se transaccionam todos os dias a nível internacional é muitas vezes superior ao valor do que se produz no mundo diariamente, o que quer dizer que alguém está a fazer apostas com o dinheiro que já nada têm a ver com a esfera económica real”.
Esta especulação é, segundo a investigadora, necessária para garantir a liquidez nos mercados financeiros, “mas apenas as necessidades de liquidez não justificam os montantes transaccionados todos os dias”.
Na origem da crise actual houve falhas na avaliação da capacidade de pagamento daqueles a quem foi emprestado dinheiro. Isabel Vieira afirma que o facto de o título de divida não ficar na posse de quem o compra pela primeira vez até à maturidade da dívida faz com que possa haver menos cuidado na avaliação dos devedores. A responsabilidade é passada de mão em mão.
“Se um país contrai uma dívida a 10 anos, o primeiro investidor que a compra, não tendo que ficar com ela, não se interessa muito pela sua qualidade. Desde que os juros sejam altos, o que interessa é não ter o título na mão quando o devedor declarar que não pode pagar – a batata quente é passada de mão em mão.”
De acordo com a professora, a entrada de Portugal na moeda única foi um erro.”O euro está mal pensado porque não está preparado para uma crise séria como esta. Uma moeda comum só interessa a países parecidos em termos económicos, que produzem e vendem as mesmas coisas”. Mas a solução também não é sair nesta altura.
“Antes do euro dizia-se que as economias que entrassem ficariam parecidas (convergiriam em termos reais) mas a economia portuguesa não convergiu para a média da zona euro, antes pelo contrário, e cada vez temos mais problemas. Contudo, agora, só valeria a pena voltar para o escudo se não pagássemos as nossas dívidas.
Quando questionada sobre o que poderia acontecer se Portugal decidisse não pagar a dívida, a professora esclarece.
“Começávamos do zero, provavelmente com muito melhores condições, tal como aconteceu com a Rússia, que declarou insolvência em 1997, como os países da América Latina, que declaram insolvência nos anos 80, ou como a própria cidade de Nova Iorque, que declarou falência em 1975. Ao contrário do que se diz, penso que haveria muitos agentes a querer emprestar-nos dinheiro, pois um país que não tem dívidas só tem potencial de crescimento e tem por isso menos risco que os outros. A premissa de que ninguém quer emprestar a quem não pagou dívidas passadas é desmentida pela realidade, pelo menos nos 3 casos referidos”.
Actualmente, boa parte do produto interno bruto português só serve para pagar dívida e juros de dívida. Numa escala mais pequena, seria como se todo o ordenado de uma família fosse somente para pagar os juros do empréstimo à habitação.
“Enquanto nos emprestarem, nós temos dinheiro para pagar. Estamos a pagar dívida com dívida, com a agravante de que os juros são cada vez mais altos porque o nosso risco de insolvência é cada vez maior. É como quem paga a conta de um cartão de crédito com dinheiro levantado a crédito com outro cartão de crédito. Mais uma vez, só nos emprestam porque querem lucrar com os juros altos que pagamos e esperam não ter a nossa dívida em carteira se (ou quando) nós declararmos que não temos condições para pagar”.
E é neste cenário que a situação se torna preocupante. A teoria económica é muito clara nesta matéria, conforme refere a investigadora. “Nenhum país cresce enquanto implementa medidas orçamentais restritivas”. E passa a explicar: “quando uma pessoa tem uma dívida muito grande pode fazer duas coisas: ou corta os gastos, que é o que Portugal está a fazer, mas nunca será suficiente, porque não podemos deixar morrer as pessoas de fome, ou temos de arranjar maneira de ganhar mais.”
A revelação é bastante surpreendente. “A melhor maneira de resolvermos o problema da divida talvez seja fazer o contrário do que se está a fazer, mesmo que durante uns anos acumulássemos um pouco mais de divida. O Estado deveria investir na economia, gerar emprego, e em vez de pagar subsídios de desemprego, receberia impostos dos trabalhadores.
E essas pessoas iam dinamizar a economia. É preciso não esquecer que temos que controlar o deficit e a dívida em função do PIB, e não apenas os valores absolutos do deficit e da dívida. Por muito bem sucedidas que sejam as medidas para diminuir o deficit e a dívida, se o PIB baixar, podemos ficar pior do que estávamos antes das medidas de correcção serem implementadas.”
Com o cinto cada vez mais apertado, torna-se cada vez mais importante saber como gastar, poupar e aplicar o dinheiro. Isabel Vieira escreveu o livro “Dinheiro: gastar, poupar e aplicar” quando percebeu que amigos seus se encontravam com dificuldades financeiras por não conhecerem princípios básicos de gestão do orçamento familiar.
A verdade é que o dinheiro é um assunto tabu. Não há o hábito de falar de dinheiro, quer se tenha muito, quer se tenha pouco, e de admitir que se é incapaz de gerir as finanças pessoais. Em pequenos, aprende-se gramática e as regras da multiplicação mas não se aprende a usar e a gerir dinheiro, o que leva adultos a não conhecerem as regras da prudência orçamental, gastando mais do que devem, não acautelando o futuro.
Não importa se o vencimento é de 485 euros, equivalente ao salário mínimo nacional, 700 euros ou 1500 euros, a investigadora defende que é sempre possível fazer uma boa gestão da conta bancária, criar um fundo de emergência e fazer o planeamento da reforma, bastando para isso alguma disciplina e analisando a sustentabilidade do nível de vida.
Mas esta última questão não é muito fácil nos dias que correm. O acesso generalizado ao crédito, que anteriormente financiava apenas a compra de casa, para carros, viagens, móveis, electrodomésticos ou até tratamentos de beleza e roupa veio alterar o conceito de necessidade real para se transformar numa forma de satisfazer desejos, que podem não estar ao alcance dos vencimentos e cujo uso de forma indiscriminada pode levar à ruína.
“Existe por vezes a confusão entre poder pagar uma prestação e poder pagar um bem ou serviço. A melhor regra de segurança e de solvabilidade é não contrair crédito para financiar consumo” refere a investigadora.
A compra da casa ou o pagamento de propinas num curso de ensino superior são exemplos de algo que, após amortização da dívida, terá valor. Já o recurso ao crédito para compra de um carro pode ser considerado um mau negócio pois à data da amortização do empréstimo já o carro tem um valor residual, pois é um bem de consumo que se desvaloriza mal sai do stand. E isto porque nos estamos a endividar para pagar algo que não tem retorno positivo, logo um mau negócio.
O uso racional do cartão de crédito é importante para a saúde financeira. São cobrados juros e, quando usado frequentemente, torna-se difícil perceber o que é que vai ser pago com o salário do mês ou com o próximo, correndo o risco de se estar a gastar dinheiro que ainda não se recebeu, ou de se estarem a fazer gastos supérfluos, graças ao efeito psicológico de passar o cartão em vez de usar dinheiro vivo.
Mas a investigadora também alerta: “Para quem consegue controlar bem os gastos, pagando a totalidade das despesas no final do mês, usando o cartão de crédito conseguem-se saldos médios mais elevados na conta, o que permite negociar por exemplo melhores spreads junto dos bancos”. No entanto, é importante não esquecer que se trata de um simples meio de pagamento e não um meio de pagar algo para o qual não há dinheiro”.
“Naturalmente, o ser humano é um ser positivo e que acredita que tudo vai correr da melhor forma, e nem sempre está preparado para um choque inesperado a curto prazo, como a perda do emprego ou um acidente que impossibilite de trabalhar, ou a longo prazo com o futuro e com a forma como nos vamos sustentar chegada a idade da reforma. Mas a verdade é que situações imprevistas acontecem e é preciso uma “almofada financeira”.
A curto prazo, Isabel Vieira defende a constituição de um “fundo de emergência”, que deve equivaler a seis salários mensais, e a longo prazo, dar continuidade a essa estratégia de poupança para a preparação da reforma. Há uns anos atrás, quem trabalhava para outrem, receberia uma pensão de reforma equivalente ao salário, até ao final da vida. Mas actualmente, o número de trabalhadores activos já não é suficiente para assegurar o pagamento das pensões a um número cada vez maior de reformados, pelo que é preciso que cada um de nós contribua para a própria reforma, “mesmo que tenhamos 20 anos e começado agora a trabalhar”.
A investigadora defende que esta não é uma tarefa fácil, pois exige planeamento, força de vontade, esforço e disciplina, bem como a capacidade de distinguir “necessidades de desejos -só assim conseguimos reduzir gastos e mantê-los ao nível dos nossos rendimentos e personalidade”.
No entanto, considera este aspecto muito importante. Poupar não deve significar abdicar de todos os prazeres, pois considera que não se pode construir o futuro à custa da frustração do bem-estar presente.

Sobre Sofia Ascenso

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