A Cafeína

Por em 8 de Junho de 2012

Cristina Galacho e Paulo Mendes | Professores Auxiliares | DQUI da Universidade de Évora e Centro de Química de Évora

O que têm em comum o café, o cacau e a “coca-cola”?

Respondendo de forma imediata poderíamos dizer que, em sentido lato, são alimentos, ou se atendêssemos à grafia afirmaríamos que todas as palavras começam pela letra c, mas se fosse a cor a despertar a nossa atenção certificaríamos que o que os une é a tonalidade castanha. É verdade! Mas há qualquer coisa mais em comum… até podemos afirmar que há uma certa Química entre eles. Ah, pois há!

É a cafeína….

Certamente que já ouviu fala da cafeína, mas sabe o que é?

Designações, fórmulas e principais caraterísticas físico-químicas?

A cafeína é um composto natural classificado como alcalóide do grupo das metilxantinas. Já agora fica também a saber que segundo a União Internacional de Química Pura e Aplicada, IUPAC (do inglês International Union of Pure and Applied Chemistry), o nome sistemático da cafeína é 3,7-Dihidro-1,3,7-trimetil-1H-purina-2,6 diona e que habitualmente se designa por 1,3,7-trimetilxantina. Continuemos a chamar-lhe cafeína que é bem mais simples…

A fórmula molecular da cafeína é C8H10N4O2 e a sua massa molar é 198,19 g/mol. As diferentes proporções dos seus constituintes são de 49,48% de Carbono (C), 5,19% de Hidrogénio (H), 28,85% de azoto (N) e 16,48% de Oxigénio (O). À pressão atmosférica normal apresenta uma temperatura de fusão de 238ºC e uma temperatura de ebulição de 178ºC. É solúvel em água, aumentando a sua solubilidade com o incremento da temperatura, por exemplo, a 25ºC é possível dissolver 2,17g de cafeína em 100 mL de água enquanto que a 100ºC já é possível solubilizar, em igual volume de água, 67,0g do referido composto.

Apresenta-se sob a forma de um pó branco (não,… não é castanho como se poderia supor pela leitura das primeiras linhas deste texto), cristalino, com aspeto brilhante, sem cheiro e com sabor muito amargo. Este sabor amargo, comum a todos os alcaloides, é característico dos compostos azotados encontrados em plantas.

Sente que precisa de um cafezinho para continuar a ler o texto? Então o melhor é abandonarmos as designações, fórmulas e principais caraterísticas físico-químicas da cafeína e passarmos a outros assuntos…

Ocorrência e História

A cafeína está presente, de forma natural, em mais de 60 espécies de plantas amplamente distribuídas pelas diferentes regiões geográficas do planeta terra. Algumas das fontes vegetais mais conhecidas são os grãos de café e de cacau, as folhas de chá verde, as sementes de cola e guaraná e a erva-mate.

A cafeína, proveniente de fontes naturais, tem sido consumida e apreciada desde tempos ancestrais, muito provavelmente desde o paleolítico. Relatos fidedignos referem que a mesma é consumida há vários milénios, designadamente, pelos chineses, desde o século III a.C. De acordo com uma lenda popular Chinesa, o imperador Shennong descobriu acidentalmente que folhas caídas ao acaso em potes de água fervente davam origem a uma bebida perfumada e revigorante – o chá, sendo esta a bebida mais antiga que contém cafeína.

Naturalmente que a história do uso da cafeína está fortemente ligada à história do café, principal fonte natural de cafeína. Admite-se que o café, tal como se conhece nos dias de hoje, seja originário da Etiópia tendo-se difundido na península arábica e daí para o resto do mundo. Novamente uma lenda popular atribui a sua descoberta a um pastor de cabras Etíope, de nome Kaldi, que se teria apercebido que o rebanho ficava agitado após alguns animais terem comido as frutas de um arbusto. Kaldi também quis provar os bagos dessa misteriosa planta e foi, imediatamente, invadido por uma euforia, tendo, nessa noite, dormindo menos que o costume.

Na Europa, o café apareceu no século XVI, tendo sido introduzido, principalmente, pelos espanhóis e holandeses, no período dos descobrimentos. Antes disso, o café era consumido de forma restrita e a bebida nobre era o chá.

Os primeiros indícios da utilização de grãos de cacau advêm dos resíduos encontrados num pote Maia, datado do séc. VI a.C. No novo mundo, o cacau foi consumido numa bebida amarga e picante, designada por xocoatl, menos apreciada pelas suas características organoléticas do que pelo seu poder revigorante. Por volta de 1500 os Aztecas iniciaram os Espanhóis no consumo do cacau tendo sido o mesmo introduzido na Europa em meados do séc. XVI, e, popularizado em Itália, França e restantes países da Europa no séc. XVII.

O descafeinado foi descoberto na Alemanha em 1903 após investigações que visavam obter um processo que permitisse remover a cafeína sem destruir o verdadeiro sabor do café. Este processo viria a ser determinante, no que diz respeito à produção industrial da cafeína, dado que a mesma é um dos produtos obtidos.

Isolamento, síntese e produção

A cafeína foi isolada pela primeira vez, a partir do café, em 1819 pelo químico alemão Friedlieb Ferdinand Runge o qual a designou por Kaffebase (base que existe no café). Pouco tempo depois, em 1821, os químicos Pierre Jean Robiquet e a dupla Pierre-Joseph Pelletier e Joseph Bienaimé Caventou, de nacionalidade francesa, isolaram o referido composto de forma autónoma e, aparentemente, sem o conhecimento do trabalho desenvolvido pelos seus pares. O termo cafféine (designação francesa para cafeína) aparece escrito, pela primeira vez, no artigo de Pelletier sobre o assunto em causa.

Em 1893-95 é a vez de mais um químico alemão, Hermann Emil Fischer, inscrever o seu nome na história da cafeína pela descoberta do seu processo de síntese total e determinação da sua fórmula de estrutura. Fischer, considerado o pai da Química Orgânica, foi laureado com o Prémio Nobel da Química em 1902.

Em 1827 M. Oudry isolou a “teína” a partir do chá e até finais do séc. XIX acreditava-se que a “teína” era uma substância diferente da cafeína. Foi só no início do séc. XX, devido aos avanços científicos nos métodos laboratoriais, que Muldler e Carl Jobst demostraram que eram a mesma substância.

De facto, mudam as concentrações, mas a cafeína é igual quer se encontre no café ou no chá…

Apesar de a cafeína poder ser sintetizada, por via laboratorial, a partir da dimetilureia e do ácido malónico, este não é o processo usual para a sua produção industrial dado que a mesma é facilmente obtida, com elevado grau de pureza e de forma mais económica, como subproduto do processo de descafeinação, tal como já foi anteriormente referido.

Existem três métodos principais de descafeinação destinados em primeira instância à produção de café descafeinado, como produto principal, e de cafeína, como subproduto. Na realidade todos estes métodos se baseiam no processo de extração por solventes variando apenas o tipo de substância (solvente) que é utilizada. Assim a extração da cafeína pode ser efetuada por recurso a solventes orgânicos, a água ou a dióxido de carbono supercrítico.

Até meados dos anos 70 do século passado a extração por recurso a solventes orgânicos constituía o único método de descafeinação. Entre os primeiros solventes utilizados destacaram-se, por ordem cronológica, o triclorometano, o benzeno e o tricloroetano, que posteriormente foram (ou vieram a ser?) abandonados por dissolverem não só a cafeína, tal como era pretendido, mas também os compostos que lhe conferiam aroma e sabor ao café, e por terem sido reconhecidos como tóxicos, quer para a saúde humana quer para o meio ambiente.

Nos anos 70 o diclorometano tornou-se o solvente de eleição devido à sua menor toxicidade e à sua capacidade de remoção da cafeína sem alterar as principais características organoléticas do café. Evidências posteriores sugeriram que o mesmo poderia ser cancerígeno, quando usado em níveis elevados, tendo sido regulamentado o valor de 10 ppm (partes por milhão) como o limite máximo no café descafeinado. Desde 1982 que o acetato de etilo foi aprovado e escolhido como o principal solvente para a descafeinação. Este é um componente que existe, de forma natural, no café e em alguns frutos e que também pode ser produzido industrialmente a partir de derivados do petróleo.

O processo de descafeinação por recurso a água baseia-se na variação da solubilidade da cafeína com a temperatura (lembra-se desta característica ter sido mencionada nas propriedades físico-químicas?). De uma forma muito resumida este processo consiste na imersão dos grãos de café verde em água a elevada temperatura, o que permite não só a extração da cafeína mas também dos componentes que conferem aroma e sabor ao café. A posterior passagem deste extrato por carvão ativado, um adsorvente poderoso e seletivo, possibilita a remoção da cafeína originando um novo extrato livre de referido composto. Seguidamente os grãos de café, isentos de cafeína, são colocados em agitação no extrato descafeinado e/ou em água concentrada em componentes que promovem o aroma e o sabor ao café, o que permite restaurar as caraterísticas organoléticas iniciais. Já agora fique a saber que existem algumas variantes deste processo, sendo as mais conhecidas, a Swiss Water Decaffeination e a French Water Decaffeination.

À pressão e temperatura ambiente, o dióxido de carbono, CO2, é um gás que se encontra, por exemplo, no ar que respiramos. Porém, com o aumento da pressão pode passar a líquido, e por diminuição da temperatura passa a sólido. Se se aumentar a temperatura e a pressão, atinge um novo estado, o de fluido supercrítico, passando a apresentar propriedades de líquido e de gás, ou seja, um gás com a densidade de um líquido. É precisamente na forma de fluido supercrítico que o CO2 permite a extração seletiva da cafeína, deixando a maior parte dos demais componentes dos grãos de café verde inalterados. Vamos então perceber como tal é possível…

Os grãos de café verdes são postos em contacto com água pura de maneira a aumentar a percentagem de água no seu interior. Desta forma ocorre uma expansão de volume permitindo a abertura dos poros, o que facilita a extração da cafeína e reduz o tempo de extração. Seguidamente o CO2 supercrítico vai entrar em contato com os grãos húmidos atuando como um solvente não polar, isto é, extraindo todas as moléculas de cafeína. Posteriormente o CO2 contendo a água e a cafeína é separado dos grãos de café descafeinados e colocado em condições normais de pressão e temperatura. Nestas condições o gás não tem afinidade nem para a água nem para a cafeína sendo facilmente reciclado e reintroduzido no processo. A solução aquosa de cafeína, depois de concentrada, é vendida, principalmente, para a indústria dos refrigerantes e farmacêutica.

Assim, graças aos desenvolvimentos da Química, os consumidores podem saborear o gosto e o aroma do café sem os efeitos prejudiciais da cafeína, enquanto que os apreciadores de cafeína o podem fazer sem consumir café, chá ou cacau.

Para a semana não perca mais uma dose de cafeína…

 

Sobre Redacção Registo

Deixar um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Comment moderation is enabled. Your comment may take some time to appear.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.