Crónicas da Transtagana

Na horta do Ti Tomás
O sol está quase a pino.
Por isso é pequena a sombra da nespereira que se projeta sobre a nora caiada, que por ter uma contra-mina dá água todo o ano, sendo esta fundamental para a atividade hortícola, na horta do Ti Tomás.
São a água e a terra fontes de vida que o suor faz crescer.
Em todo o perímetro da horta existia um sistema de rega como indica o lago, junto ao tanque onde se lavava a roupa, bem como uma ou outra caleira que ainda resiste aos efeitos do tempo que por elas passou, deixando as marcas que contribuíram para o seu desuso.
O cocho de cortiça, dependurado na parede junto à porta de casa, servia para matar a sede com água fresca e corrente, antes desta cair no lago e partir horta fora para dar de beber a hortaliças e legumes.
Procuramos encontrar, com o olhar, o “Ti Tomás”.

Viu-nos ele primeiro.
Não fora o momento que vivemos de pandemia de covid-19, declarada pela Organização Mundial de Saúde, teríamo-nos cumprimentado, ao invés do “como está” aventado de longe.
Sempre por perto a “Violeta” segue os passos do dono.
Parece intrigada com a presença de estranhos.
A sua atitude indica que nos está a vigiar.
Ora mais junto do Ti Tomás, ora um pouco mais longe, sem contudo arredar pé.
– Não me larga. Anda sempre atrás de mim. É uma grande companhia. É um animal muito meigo.
Às vezes parece atrasar-se de propósito para, sem que algum de nós se aperceba, vagarosamente, tomar o lugar mais próximo do seu dono, prestando atenção a cada gesto do Ti Tomás, seguindo com o olhar o movimento constante da sua mão, usado para nos elucidar sobre o trabalho, desta última semana de abril, na Quinta de Santa Maria.
– Fazemos uma regueira mestra. Regando a pés o tomate torna-se mais grado. Quando for lá para meados de agosto, temos aqui tomate graúdo e macio.
– Faz uma tomatada! – remata com um sorriso comedido.

Tomás dos Santos Rosado Toureiro, que fará “84 anos a dois de natal” nasceu “a poucos metros daqui, na Quinta do Pombal”, e “sempre aqui” viveu e trabalhou.
– Sempre, sempre não – faz uma pausa para ganhar alento e recompor a voz embaraçada – mas foi aqui que criei, com a minha companheira, os nossos cinco filhos.
Quando casou rumou para a “Herdade da Furada, na Freguesia de São Vicente do Pigeiro.”
Foi trabalhar a terra de sua madrinha, a Condessa de Ervideira.
Mas razões de saúde trouxeram a família de volta à Vila de Arraiolos.
O Ti Tomás trabalhava na horta, ia à ceifa e vendia no mercado o fruto do seu esforço.
A venda dos produtos da horta, antes da construção do Mercado Municipal de Arraiolos, fazia-se “na Praça em frente à Câmara”.
– Eram mais de quarenta hortelões. Às vezes eram duas filas de tabuleiros. Depois fomos para o mercado. Fui dos últimos a deixar de lá ir. As coisas mudaram.
– É preciso trabalhar a terra. Gostava de trazer isto tudo arranjadinho. Aprendi com o meu pai. Eram outros tempos. Daqui até à estrada real era tudo cereal de pragana.
No inverno apanhávamos azeitona. Havia três lagares na vila.
Demoradamente, o Ti Tomás dá-nos uma lição sobre as sementeiras.
Das searas e da ceifa, da horta e das árvores de frutos, enquanto atentamos nos canteiros de tomate e de cebolo, nas plantas de abóbora, nas ervilhas e nas favas que começam a cair, nas batateiras viçosas, que este mês de abril foi de jeito, e nos coentros que que já começam a espigar, entre espinafres tenros junto do canteiro de repolho lombardo.
– No S. João, alhos ao chão.
Enquanto nos explica que este ano plantou à manta o cebolo, cujo criadouro foi semeado no fim do mês de “natal”, depois de “em meados de santos ter deitado à terra as ervilhas”, Ti Tomás afaga a antiga balança decimal, ainda em uso, antes de nos dar a conhecer a velha charrua de ferro:
– Tive aí um macho que fazia uma jeira. Não sei a força que o animal tinha. Eu guiava-me pelo molim e era com cada “lêva”. Quando a relha era nova não havia nada que o parasse.
Pousa a mão na rabiça. Exemplifica como equilibrava a charrua e segurava a arreata do “besto”.
Eleva o olhar. Parece surpreendido com o interesse demonstrado.
Mas é merecida esta atenção. Pelo saber que nos transmite e, sobretudo, pela forma tranquila como fala da terra e de tudo o que ela nos dá.
– O que precisamos para comer a terra produz. É uma pena que se tenha deixando de amanhar a terra. Hoje, quando se quer fazer algum trabalho na horta, é muito difícil encontrar pessoas para o fazer.
Há uma certa amargura na confidência, mas ao mesmo tempo uma réstia de esperança.
– Um dia destes fizeram um mercado na rua, além ao pé do jardim. Fiquei admirado. As pessoas gostaram dos frescos e vieram cá procurar o que havia, como faziam noutros tempos. E também é verdade que há novas maneiras de fazer as coisas, como a rega gota a gota, que as minhas filhas já me falaram.
Os que sempre dedicaram à terra a sua vida e labutam nesta faina com afinco, bem merecem melhor ventura nos tempos vindouros.
texto – José Manuel Pinto
foto – Florbela Vitorino
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