O Cante Alentejano na arena do Património Imaterial

Por em 15 de Dezembro de 2011

A recente decisão da UNESCO a respeito do Fado veio chamar de novo para a ribalta a ideia, já antiga, de inscrição do Cante nessa mesma lista da UNESCO. O compreensível entusiasmo que tal candidatura suscita não deve levar-nos a esquecer a que ponto as posições das duas formas culturais (Fado, Cante) no panorama nacional são diferentes, o que se repercute nas dificuldades próprias da candidatura do Cante.
Daí que as questões de salvaguarda das práticas e dos espólios de cada uma delas se apresentem também de modo diferente, não só pela dificuldade em definir o que se quer salvaguardar, pela natureza das colectividades suas portadoras, como, por fim, pela diversidade dos actores que têm que ser responsabilizados para viabilizá-las.

1. Duas candidaturas, dois mundos

As diferenças são importantes, não só por causa do imenso espólio discográfico, radiofónico e literário que foi consagrado ao Fado durante o século XX, em parte através de circuitos comerciais rentáveis e alimentou a fundamentação da candidatura, como pela proximidade política e social do Fado em relação aos centros de poder: Lisboa e as suas elites políticas, intelectuais e artísticas. O Cante, ao invés, é uma forma cultural praticada em meios quase exclusivamente rurais, e mesmo quando se implanta nos subúrbios das cidades contemporâneas (nas duas margens do Tejo, para onde emigraram os Alentejanos), conserva as suas referências rurais. A sua difusão comercial é quase inexistente, e os seus praticantes são membros de populações rurais pobres, que têm em média baixos níveis de formação escolar e de literacia, e a sua continuidade cultural com as elites nacionais é praticamente nula.
A documentação, nomeadamente sonora, das práticas do Cante são infinitamente mais restritas que as do Fado, os estudos históricos, antropológicos e musicológicos sobre o Cante são menos numerosos e menos aprofundados. A dispersão das práticas do Cante num espaço relativamente vasto, no qual as comunicações foram, até há pouco tempo, escassas, permitiu a emergência de repertórios e de maneiras de cantar diversas, específicas das pequenas localidades ou regiões do Alentejo.

2. Efeito mass media: difusão, transformação

Acresce que com a difusão das tecnologias de difusão (rádio e televisão), se impuseram novas solicitações, em função dos gostos de públicos mais vastos e sobretudo de públicos que não possuem nenhum dos critérios de avaliação da qualidade do Cante que lhes é servido, o do que lhes é servido sob a etiqueta de “Cante”.
As exigências desses novos contextos de prática e de difusão reflectiram-se na proliferação de novas formas, entre as quais a mais evidente foi o recurso crescente a acompanhamentos com instrumentos musicais. Os públicos de rádio e de televisão estão menos preparados para receber – e perceber – certos tipos de modas, como as chamadas “modas pesadas” ou “modas da lavoura”, que lhes parecem tristonhas, monótonas, cansativas, e preferem modas “alegres”, ligeiras, e até dançantes.
Fenómenos que eram raros e decerto considerados como anómalos em relação ao “verdadeiro Cante” pelos cantadores rurais, como a presença de acompanhamento instrumental, tornaram-se cada vez mais comuns. Surgem grupos de bailes, “tocatas”, e até grupos instrumentais que se confundiriam com tunas: há mais formas musicais no Alentejo, para além do Cante.
Mas enquanto reconhecemos o pleno direito a todo e qualquer cidadão de praticar o tipo de música que desejar e lhe convier, o certo é que no caso do Cante a proliferação de práticas que chamarei “formas derivadas do Cante” tende a dificultar a percepção daquilo que é o Cante no sentido mais restrito, e também mais original.
O Cante é um canto a vozes, a capella (sem instrumentos). Além disso, o inquérito que conduzimos em todo o Alentejo nos últimos quatro anos  mostra que os cantadores de tradição oral consideram que são precisamente as modas “pesadas” (lentas, solenes, ornamentadas), que constituem, para eles, o núcleo central do Cante, sendo a maneira de cantar que essas modas exigem a mais difícil de praticar e de aprender, mas também, segundo muitos cantadores, a mais característica do Cante tal como nasce nas aldeias do Alentejo.
Os cantadores têm consciência da dificuldade que representa para os públicos urbanos a escuta prolongada desse núcleo central.
Uma eventual candidatura do Cante a património imaterial da Humanidade terá por conseguinte que lidar com estas questões: o que é verdadeiramente o Cante, e o que são as formas derivadas que, sendo obviamente lícitas formas de divertimento musical, não só ficam de fora, mas têm que ser cuidadosamente afastadas da definição do Cante, sob pena de se destruir aquilo que o Cante tem de próprio, de específico e de original?

3. Culturas em risco: o Cante e o seu futuro

Um dos critérios que as comissões da Unesco têm em consideração, nos termos da “Convenção do Património Cultural Imaterial” (2003) é que o “item” candidato constitua uma prática que esteja em risco de desaparecer. Esta preocupação justificou a criação duma lista especial que destaca as formas culturais que “requerem medidas urgentes de salvaguarda”, porque correm, mais que as outras, o risco de se extinguir a breve prazo.
Aqui se situa porventura a maior diferença entre o Fado e o Cante. Enquanto o primeiro não está certamente ameaçado de extinção, o Cante, sendo suportado por uma colectividade envelhecida, em que os praticantes de origem social rural, modesta, são cada vez menos numerosos, corre efectivamente, na opinião da maioria dos cantadores actuais, o risco de se extinguir, ou – o que para eles e para nós é equivalente, de se descaracterizar.
Tanto quanto a diminuição do número de cantadores, a banalização dos repertórios, das maneiras de cantar e dos modos de performance, aproximando cada um destes aspectos das formas de músicas populares largamente difundidas pelos mass media, é um perigo que muitos percepcionam como porventura menos óbvio, mas mais insidioso e talvez mais grave ainda.
A candidatura do Cante deveria portanto visar não só a inclusão nas listas da Unesco, mas precisamente na lista restrita das formas culturais “que requerem medidas urgentes de salvaguarda”. Mas “salvaguardar”, diz também o documento da Unesco, é diferente de “congelar”, ou de “fossilizar” a forma cultural que se quer manter ou (re)vitalizar. É este o ponto mais difícil de todo o processo.
A questão central que se coloca quando se encara a “salvaguarda” é a da transmissão dos saberes do Cante, dado que as maneiras tradicionais de transmissão estão elas próprias postas em causa. Qual seria, nestas condições, a estratégia eficaz para a salvaguarda do Cante? Tentaremos responder aqui mesmo, num próximo artigo.

Sobre José Rodrigues dos Santos

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