M. Raquel Lucas

Por em 22 de Março de 2020
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UM VÍRUS ANTIGLOBALIZAÇÃO E PRÓ DIGITALIZAÇÃO

A extensão da atual crise será medida pela sua magnitude real na sociedade, na economia e na sobrevivência de muitos negócios. Desde o teletrabalho à suspensão das celebrações, esta crise decorrente de emergências sanitárias, impossível de prever e antecipar, impeliu o encerramento de fronteiras, a suspensão de trocas comerciais e o controlo do movimento de populações, num processo antiglobalização, que afeta modelos de relacionamento social e empresarial e induz um reordenamento internacional. Particularmente na Europa, esta situação é agravada pela já débil e catastrófica situação resultante do Brexit e da imprevisibilidade das suas consequências.

Com todos os recursos focados num único objetivo, o de combater e parar a pandemia e com a economia mundial paralisada, restam as boas noticias relativas ao gigante asiático ter a situação aparentemente controlada e uma possível cura para o vírus e ter iniciado ou retomado as importações da europa. Adicionalmente, há uma redução considerável das emissões de CO2 na atmosfera, céus menos poluídos pela menor queima de combustíveis fósseis e de circulação, trabalho a partir de casa, poluindo e gastando menos e mitigando o trânsito, uma superior valorização das reuniões virtuais vs as presenciais e o crescimento das transações online com a sequente criação de postos de trabalho adjacentes.

Muito vai mudar e de forma rápida. Basta pensar, nesse aumento substancial das transações online no último mês de confinamento mundial e no avanço qualitativo ocorrido na digitalização da sociedade e suas consequências. Em circunstâncias “normais” toda esta alteração demoraria muito mais tempo.  Quanto a implicações, estas são a vários níveis, para as organizações, para os consumidores e para a economia e o ambiente.

Certamente as organizações irão equacionar, entre outros, a sua localização, dimensão, gestão de pessoas e talentos, processos de produção e operações logísticas, assim como, as formas de venda e de pagamento, estas últimas, com efeitos no sistema financeiro e as ações de marketing. Algumas empresas decidiram implementar planos amplos de teletrabalho, outras não o fizeram, por dificuldades técnicas e muitas,  interromperam as ações de marketing ou deslocalizaram-nas para plataformas digitais, adiaram investimentos, suspenderam eventos e estão determinadas em amparar os seus colaboradores (internos e externos), facilitando a comunicação e a informação, as condições de trabalho em segurança e/ou, aplicando formas de regulação temporária de emprego para fazer face à perda de atividade. Os freelancers estão apreensivos quanto ao futuro e à sua falta de proteção e, as medidas anunciadas pelos governos embora ajudem, tardam em ser implementadas e os seus resultados são incertos. A construção de comunidades virtuais será uma boa forma das organizações interagirem com os colaboradores e de manterem a ligação e o relacionamento.

Também os consumidores tenderão a digitalizar-se nos processos de compra, reequacionando prioridades, práticas de consumo, mais responsável e, escolhas de produtos e marcas associados a significados especiais e positivos neste momento difícil da sua vida, que não se sabe como nem quando vai terminar. Embora alguns consumidores adotem comportamentos de acumulação ou excessivo consumismo, a maioria reage de forma sensata, mesmo perante situações imutáveis, como a suspensão de comemorações de grande valor simbólico e económico, como a Páscoa, ou o encerramento de cinemas e teatros, eventos (desportivos e outros) e, locais de lazer e de serviços.

Quanto à economia, as repercussões serão graves, quer a nível micro, quer macroeconómico, em particular na microeconomia das famílias. Na conjuntura nacional, é expetável uma profunda recessão de contornos temporais imprevisíveis associada ao aumento do desemprego e à redução das receitas fiscais, em consequência do fecho de muitas empresas, ao crescimento da dívida pública e ao aumento da vulnerabilidade social e económica de muitas famílias e indivíduos. Períodos de carência para muitas obrigações fiscais e sociais nos setores público e privado, assim como apoios ao desemprego e formas de fazer face à divida pública, entre muitas outras medidas já anunciadas e previstas, são algumas formas de atenuar os efeitos negativos desta crise.

No caso da agricultura, a capacidade de a Europa fornecer alimentos depende da preservação do mercado único e da sua não interrupção, assim como, da adoção de uma estratégia consistente e clara para garantir um fluxo ininterrupto de produtos agrícolas, alimentos, bebidas e materiais. Se, o fechar das fronteiras pode impedir a propagação do vírus, por outro lado, pode também interromper a cadeia logística agroalimentar, que opera além-fronteiras com um nível de integração elevado. Um plano de contingência que contemple estes e outros aspetos, como a eventual prevenção da escassez de mão-obra, devia ser considerado, num trabalho de coordenação de ações entre governantes e responsáveis do setor, de valorização e apoio dos esforços dos agricultores, da indústria agroalimentar e dos distribuidores para continuar a garantir o abastecimento alimentar. A eficiente estrutura e a grande capilaridade da rede de distribuição alimentar, pela localização e proximidade das lojas às populações, aliada ao reforço das vendas online podem não ser suficientes para fazer face à situação atual.

Só uma governança global poderá lidar com os problemas decorrentes deste vírus, que é um subproduto da globalização!

Será a pandemia o limiar de um processo progressivo de desglobalização onde cada país recupera a sua supremacia?

Questões para as quais não há resposta….

apenas a certeza de uma maior digitalização da sociedade….

da eventualidade desta crise trazer mais solidariedade e sentido de humanidade …

…. e de vir a existir um maior controlo das dinâmicas da globalização…

Maria Raquel Lucas

Departamento de Gestão e CEFAGE, Universidade de Évora

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