O silêncio dos inocentes
A maioria dos portugueses atravessa um deserto repleto de desesperos, pressões e angústias. Famílias inteiras em situação de desemprego, milhares de pessoas em risco de perderem a possibilidade de habitar em condições condignas, reformados com os seus rendimentos penhorados porque de, forma altruísta, aceitaram ser fiadores de filhos e netos que não conseguem hoje cumprir os seus compromissos.
Os cortes nos rendimentos do trabalho, os aumentos dos bens essenciais, a angústia de quem não sabe se consegue dar aos filhos a formação escolar ambicionada, a rede familiar sem margem para mais solidariedade.
Cruzo-me diariamente com pessoas a viverem nestas circunstâncias e pergunto-me porque não reagem, porque não resistem, porque não se juntam aos que se manifestam, aos que lutam organizadamente, aos que acreditam que existe uma alternativa.
Confesso que é com alguma perplexidade que vejo raiva e desespero transformadas em isolamento e em conformismo, numa espécie de praga que ameaça afectar a saúde mental colectiva.
Os arautos das “troikas” confundem esta atitude com apoio às suas políticas e compreensão para com os sacrifícios pedidos, como se alguém que ficou sem emprego e sem casa pudesse ser suporte social dos que provocaram a situação.
Acreditam que tal atitude se pode manter até que entendam que todos os “ajustamentos” estão feitos e que empobrecemos todos o suficiente, que trabalhamos por metade do preço o dobro das horas, que pagamos a saúde e a educação, que aceitamos a exploração como uma inevitabilidade.
Acreditam que nestas condições de correlação de forças não têm sequer necessidade de fingir que aliviam a pressão para garantir que a panela não explode.
Alguns “pensadores” vão aparecendo aqui e ali alertando para este abastecer silencioso de combustível composto de desesperos diversos. Não que pretendam inverter a situação, nada disso, apenas pretendem garantir que a corda não parte e que o essencial não muda.
Mas até perante estes alertas a surdez de direita no poder é total e assenta no cumprimento da sua agenda ideológica, custe o que custar.
Um melhor conhecimento da história seria suficiente para baixar os níveis de arrogância desta gente. Mas eles têm a crença de que a história chegou ao fim.
Este silêncio dos inocentes, esta contenção (por vezes incompreensível) de quem sofre violenta e diariamente com estas políticas, não pode durar sempre.
Não pode ser sempre eficaz a estratégia de culpabilização das vítimas, assente em argumentação primária e numa comunicação agressiva.
Não irá durar sempre a aceitação de argumentos do género: “estás desempregado porque não antecipaste a mudança”, “a culpa é da falta de empreendedorismo dos portugueses”, “estás a pagar agora o excesso de direitos que tiveste”, “tens a reforma penhorada porque não acautelaste tudo quando foste fiador na compra da casa do teu filho”.
Haverá um momento em que todos os desesperos se juntarão e aí a violência da resposta será equivalente à violência do ataque perpetrado.
Os tais “pensadores” avisados vão dizendo que nessa altura será a “classe política” o alvo da indignação generalizada. Se os olhos estiverem abertos será esta política de classe o alvo da reposta.
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